Conteúdo da Hashitag #02

Perfil: Lucien Taira, do Nozuki

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fotos: Ricardo Miyajima

A paulistana Lucien Taira foi chef do restaurante Nakombi e trabalhou com o chef japonês Yasuo Asai no restaurante do hotel Grand Hyatt em São Paulo. Atualmente no comando da cozinha do restaurante Nozuki*, Lucien recebeu a equipe de HashiTag para uma conversa.

Ser mulher em uma profissão predominantemente exercida por homens foi um assunto inevitável, inclusive a história de que mulheres não podem preparar sushi em razão de variações da temperatura do corpo. “Puro preconceito”, disse (leia página 3).

O conceito de “comfort food” (página 2) foi outro tema. Trata-se daquele prato nostálgico, que nos faz lembrar de alguma história. “É a comida que vem com um abraço junto”, define Lucien.

*Atualizado em 19/03/2012: o restaurante Nozuki não está mais em atividade.

Entrevista: Chef Lucien Taira

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Como você avalia a formação dos profissionais de gastronomia atualmente? Até alguns anos atrás, não existia graduação na área de gastronomia. Os profissionais da área se formavam no exterior, eram autodidatas ou aprendiam trabalhando. Essa formação intitulada “chef de cozinha” tem um custo muito alto aqui no Brasil. O curso é caríssimo, o retorno disso tudo demora anos e anos, e essas pessoas não contam que, na prática, vão ter que lavar muitas panelas, a cozinha etc. O horário é ruim, e muitas vezes somos obrigados a esquecer que temos família, pois passamos Natal e Ano Novo trabalhando. A rotina é árdua. A mídia vende a ilusão do glamour, mas a realidade não é bem assim. Então muitas pessoas acabam se desiludindo e desistindo da carreira. Mas esse “boom” da gastronomia no Brasil se deve muito à profissionalização dos cozinheiros.

Qual ou quais são as maiores dificuldades na hora de montar uma equipe para um restaurante? Acho que dificuldade de contratação de pessoas existe em todas as áreas. Mas em restaurantes, os profissionais dificilmente concentram muitos anos de sua vida em um único lugar. Os salários não são os melhores do mundo, em relação à quantidade de horas que se trabalha. Por muito pouco, esses profissionais mudam de emprego. Outra dificuldade é encontrar um profissional especializado. Em muitas vezes, é preferível contratar uma pessoa que apenas tenha habilidade para ser um bom profissional de cozinha e ensinar aos poucos. Assim, você forma o seu profissional a um custo muito mais baixo. Você dá oportunidade a alguém, e esse alguém se dispõe a aprender e trabalhar. Quem se propõe a isso são pessoas da região nordeste do Brasil que vêm para São Paulo em busca de uma oportunidade e que acham o serviço de cozinha “leve”, levando em consideração que seu último emprego fora de cortador de cana-de-açúcar. Já foi feita uma pesquisa em que foi constatado que a maior parte da mão de obra de restaurantes vem de fora de São Paulo, principalmente dessa região.

Como foi seu estágio no Japão? Eu, como sansei [descendente de japoneses de terceira geração], conhecia o Japão apenas pelos meus avós. Estudei em youtien (pré-escola japonesa) e aprendi a ler e escrever japonês antes do português. Desde que nasci, vivo essa cultura japonesa vinda dos imigrantes que vieram para o Brasil em busca de uma vida sem guerra. Mas vi que o Japão não é mais o mesmo desde que meus avós saíram de lá. A língua evoluiu, sofreu modificações; eles não falam o mesmo japonês que falam aqui no Brasil. A comida também é diferente. Na verdade, na falta dos mesmos ingredientes, o modo de preparo foi se adaptando. Isso, apesar de não ser original do Japão, foi ótimo, pois fez com que a comida japonesa se popularizasse no Brasil. Para os brasileiros, os japoneses são todos tradicionais, seguem aquela cultura antiga dos tempos dos samurais – sushi com maionese, jamais. O que eu vi lá foi um país moderno, em que o seu jeito de vestir não diz se você é rico ou pobre. Existe a tradição, sim, mas ao mesmo tempo o contemporâneo anda junto. Não existe certo ou errado para o que se come. Fazem comidas que, se eu fizer aqui, vai ser uma aberração, mas lá aceitam e quem gosta consome.

Como é criar um prato novo? Qual a inspiração? O primeiro passo é escolher o protagonista do prato. Depois disso, começo a harmonizar com os coadjuvantes. Com o tempo, a gente cria uma biblioteca de sabores na cabeça. Por isso, tenho a necessidade de comer coisas novas sempre. Experimentar ingredientes novos, conhecer técnicas novas de cocção. Escrevo tudo e, no dia em que vou testar o prato, faço os ajustes. O que me inspira é meu estado de espírito. Acho que a criatividade nunca acaba. Conhecendo bem as técnicas e os ingredientes, fica fácil.

Fale um pouco sobre o “comfort food”. Comfort food é aquela comida que nos remete aos bons momentos e lembranças da nossa vida. É a comida emocional: quando você sente o cheiro, já lembra de alguém ou de uma história. É a comida que vem com um abraço junto. Falando no português claro, é a “comida da vovó”.

Qual é o prato que lhe é mais nostálgico? Um prato nostálgico é um cozido de nabo, o iritchá. É um prato da região de Okinawa, de onde meus avós vieram. Lembro da minha avó comprando o nabo na feira, cortando em tirinhas, colocando no varal para secar por dias. Isso era feito durante o ano para comer no Oshougatsu (Ano Novo). É o ritual todo que fazia a comida ser tão boa. Lembro do meu avô fazendo mochi [bolinho de arroz] no dia 1° de janeiro, por anos e anos. Ele batia o arroz com um martelo de madeira gigante em um tronco. Ele dava uma martelada e a minha avó misturava a massa. Era o melhor mochi do mundo. No comfort food, cada prato conta uma história.

Por que não há tantas mulheres entre chefs de cozinha? Sempre falo que mulher tem dois empregos. Eu, no caso, no restaurante e depois em casa. Dupla jornada não é para qualquer uma, não. Em algum estágio da vida, a mulher vai ser mãe. Fico imaginando como seria uma mulher grávida de oito, nove meses, com um barrigão e trabalhando numa cozinha a 35°C, em pé, o dia todo. Não deve ser fácil, não. Essa profissão é, com certeza, muito mais fácil para os homens que para as mulheres.

É verdade que, em culinária japonesa, o corpo da mulher tem uma temperatura inadequada para lidar com o peixe cru no preparo de sushi e sashimi, por exemplo? Nunca vi nenhuma pesquisa científica falando dessa diferença de temperatura corporal. E, se existir, não seguramos o peixe tanto tempo assim na mão a ponto de ele ficar impróprio para comer cru. Puro preconceito. No Japão, vi muitas mulheres trabalhando em sushi-ya [restaurantes especializados em sushi]. Acho que é o medo [dos homens] de perder seus postos de trabalho para as mulheres.

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